Aquela velha discussão de que a galinha do próximo é mais gorda do que a minha reaparece com o recorrente êxito que os filmes de nossos hermanos estão tendo em premiações, bilheterias e na mídia.
Ricardo Darín e Wagner Moura, atuais caras dos cinemas argentino e brasileiro |
A grama do vizinho é mais verde
O recente sucesso de bilheteria no Brasil do filme argentino Relatos selvagens,
de Damián Szifrón, reaqueceu uma discussão que tem sido revisitada nos
últimos dez anos: por que o cinema dos vizinhos argentinos aparenta ser
tão melhor que o nosso? A resposta entusiasmada dos brasileiros ao
intenso candidato da Argentina ao Oscar 2015 de filme estrangeiro leva
muitos cinéfilos e formadores de opinião daqui a perguntar algo do tipo
“o que eles têm que nós não temos?”. É incorreto e simplista afirmar que
o cinema argentino é superior – o máximo que se poderia declarar seria
que o cinema comercial da Argentina tem mais qualidades do que o nosso.
Incluem-se, neste grupo, as produções que visam ao grande público, o
mais amplo e variado possível. Neste sentido, em termos de Brasil, isto
representa, na maioria das vezes, um Globo Filmes e, de uns anos para
cá, com predominância desmedida de comédias populares.
O espectador daqui passou a reparar na produção audiovisual portenha a partir do início dos anos 2000 com Nove rainhas, de Fabián Bielinsky, e em especial com a expressiva permanência em cartaz do cult O filho da noiva,
de Juan José Campanella. Os dois títulos já tinham em comum o notável
ponto de atração dos longas de maior repercussão no Brasil: a presença
de Ricardo Darín, ator-fetiche do recente cinema de lá. É só pensar
ainda no vencedor do Oscar O segredo dos seus olhos, também de Campanella, no singelo e de forte boca a boca Um conto chinês, de Sebastián Borensztein, e no próprio Relatos selvagens.
Mas a explicação da boa imagem conquistada por aqui pela produção
argentina de cinema não se resume, obviamente, a um ator, por mais
carismático que este seja.
A
principal questão é que os filmes argentinos que são lançados ou
exibidos no Brasil e, muitas vezes, premiados em festivais
internacionais, nos últimos 15 anos, são fruto de um estruturado e lento
investimento movido pelo governo a partir dos anos 1990 no audiovisual
local, através do Instituto de Cine y Artes Audiovisuales (Incaa).
Durante toda aquela década, investiu-se pesado na criação de escolas de
cinema e, em especial, na formação de um circuito de salas populares,
que, a preços acessíveis, garantiam (e garantem) a exibição das
produções argentinas. Ao mesmo tempo que se construiu uma nova geração
de profissionais, com nomes importantes, como Lucrecia Martel (O pântano), Pablo Trapero (Família rodante) e Daniel Burman (O abraço partido),
formou-se um público capacitado, interessado em assistir à produção de
seu país, sejam obras “de massa” sejam títulos autorais. Neste aspecto, é
importante ressaltar que a média do espectador argentino tem um consumo
literário mais regular do que o do brasileiro e, acima de tudo, os
vizinhos não convivem em sua mídia com uma presença tão dominante e
definidora de linguagens quanto os braços artísticos da TV Globo.
Leia-se: em geral, os argentinos lidam melhor, por exemplo, com tramas
elípticas e de conteúdo simbólico, os roteiros atendem a esta demanda
mais afinada e as produções são viabilizadas, em sua maioria, via
coproduções com outros países, em especial Espanha e França.
É como resume a apaixonada por e pesquisadora do cinema latino-americano Maria do Rosário Caetano, jornalista do blog Almanakito e colaboradora da Revista do Cinema Brasileiro:
“Para além do carisma de Darín, há a consistência dos roteiros, a
temática ligada aos problemas da classe média e o diálogo com o cinema
narrativo clássico, sem esquecer que as histórias argentinas conseguem
ser universais”. Em linhas gerais, o cinema argentino popular ou “de
arte”, de grande produção ou independente, costuma se comunicar
globalmente pelo humanismo de seus entrechos e por um senso crítico nas
tramas, mais liberto do que o praticado, por exemplo, no cinema
brasileiro, de caráter subvencionado por natureza de produção. Aqui,
recuperou-se o audiovisual pós-Retomada de 1995, investindo no “fazer
cinema”, criando leis de incentivo e também editais que viabilizassem os
filmes. Ficou-se a dever, porém, na garantia de exibição e na formação
de um novo público. A cada ano, finalizam-se mais títulos no Brasil, o
que é ótimo, mas a gigantesca fatia desta produção tem visibilidade
mínima, com nanolançamentos (em pouquíssimas cópias e horários esparsos)
ou sem encontrar formas ideais de estrear, o que por vezes adia em anos
a luz da projeção ou mantém inúmeros títulos no ineditismo. O grande
circuito nacional, portanto, é ocupado em boa parte pelas
“globochanchadas” e outros filmes com recursos captados junto a grandes
empresas, não diversificando o paladar audiovisual do espectador
brasileiro.
O rabo preso que gera um audiovisual financiado corporativamente é um
cinema tímido em conteúdo e ousadia estética. Rosário Caetano comenta
sobre esse tendão de Aquiles brasileiro: “Nosso cinema comercial tem
muito a aprender com o argentino: a elaborar roteiros mais consistentes e
criar personagens densos, não caricatos ou escatológicoapelativos como
os de nossas comédias, que insistem em ‘mais do mesmo’ – ou seja, em
versões temperadas com mais grosserias que as mostradas pela TV aberta”.
Quando um mercado percebe que há espectador em bons números para
produções mais elaboradas, mesmo que clássicas, como O segredo dos seus olhos e Relatos selvagens,
o audiovisual como um todo responde de forma positiva. Em
contrapartida, reparando-se nas dez maiores bilheterias brasileiras de
anos recentes, mais da metade é sempre tomada pelas chanchadas – e o ano
de 2015 promete ser recordista em número de estreias no gênero!
É
preciso quebrar fortes vícios de comportamento no Brasil para que mais
espectadores tomem contato com uma numerosa e quase invisível produção
autoral ou de gêneros que se pratica por aqui. “O nosso cinema autoral,
ou de invenção, não tem que mirar no vizinho. Tem que seguir com suas
aventuras e buscas de linguagem”, ressalta a jornalista.
O sucesso recente em festivais de cinema no mundo todo de filmes tão díspares quanto O som ao redor, de Kleber Mendonça Filho, e Hoje eu quero voltar sozinho,
de Daniel Ribeiro, é a ponta de um iceberg ainda a ser descoberto pelo
grande público: ambos marcam a estreia de cada realizador na direção de
longas de ficção (sangue novo), foram produzidos de forma alternativa
(longe de sombras globais) e tiveram forte retorno junto às mídias
especializadas e também a um público ávido tanto por um cinema pensante e
crítico (ainda modestos 100 mil espectadores) quanto por um emocional e
humano (por volta de 210 mil).
Um pequeno passo se anuncia neste ano de 2015 com a deliberação da
Ancine (Agência Nacional de Cinema) de proibir a estreia de um único
título estrangeiro em mais de 30% do total do circuito exibidor do país.
Era necessária e urgente uma lei protecionista que impeça o ocorrido em
novembro último com o mais recente título da franquia Jogos vorazes,
que ocupou praticamente metade das salas existentes no país. Esta
medida básica garantirá espaços para uma pluralidade maior de títulos em
exibição, o que é sempre saudável e há muito é praticada na Argentina.
O cinema brasileiro tem muito a mostrar e seduzir mundo afora, desde que
tanto forme internamente um público regular e orgulhoso de sua produção
quanto também se solte das amarras subvencionadas, que limitam voos
mais ambiciosos. Uma das trilhas saudáveis para isso são justamente as
coproduções internacionais, que em suas regras já deliberam autonomia
criativa e por natureza garantem melhor acesso ao mercado internacional.
Rosário Caetano enfatiza esta necessidade, inclusive entre os dois
países teoricamente tão rivais, mas lamentando: “A colaboração do Brasil
com outros países é vital, mas as parcerias ainda deixam muito a
desejar, perdendo assim a oportunidade de somar atores, equipes técnicas
e artísticas”.
É fato, portanto: boa parte das estreias argentinas com as quais o
espectador brasileiro toma contato, com ou sem Ricardo Darín, são
títulos de ponta de uma produção que reflete um mercado audiovisual mais
coeso e independente. E sim, o cinema brasileiro de maior escopo sofre
de vícios enraizados no sistema de produção vigente. Neste raciocínio, a
Argentina se apresenta no cenário internacional de forma mais
competitiva e com um cinema que equilibra ousadia temática com
classicismo narrativo. E o cinema brasileiro, multifacetado por sua
própria natureza, precisa aprender a jogar este jogo e a proclamar
independência estrutural para mostrar de fato suas muitas caras e
qualidades. Assim será possível empatar ou ganhar próximas partidas
neste gramado cultural.
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