sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

O cinema argentino é melhor que o nosso?

Aquela velha discussão de que a galinha do próximo é mais gorda do que a minha reaparece com o recorrente êxito que os filmes de nossos hermanos estão tendo em premiações, bilheterias e na mídia.      

Ricardo Darín e Wagner Moura, atuais caras dos cinemas argentino e brasileiro

A grama do vizinho é mais verde

O recente sucesso de bilheteria no Brasil do filme argentino Relatos selvagens, de Damián Szifrón, reaqueceu uma discussão que tem sido revisitada nos últimos dez anos: por que o cinema dos vizinhos argentinos aparenta ser tão melhor que o nosso? A resposta entusiasmada dos brasileiros ao intenso candidato da Argentina ao Oscar 2015 de filme estrangeiro leva muitos cinéfilos e formadores de opinião daqui a perguntar algo do tipo “o que eles têm que nós não temos?”. É incorreto e simplista afirmar que o cinema argentino é superior – o máximo que se poderia declarar seria que o cinema comercial da Argentina tem mais qualidades do que o nosso. Incluem-se, neste grupo, as produções que visam ao grande público, o mais amplo e variado possível. Neste sentido, em termos de Brasil, isto representa, na maioria das vezes, um Globo Filmes e, de uns anos para cá, com predominância desmedida de comédias populares.

O espectador daqui passou a reparar na produção audiovisual portenha a partir do início dos anos 2000 com Nove rainhas, de Fabián Bielinsky, e em especial com a expressiva permanência em cartaz do cult O filho da noiva, de Juan José Campanella. Os dois títulos já tinham em comum o notável ponto de atração dos longas de maior repercussão no Brasil: a presença de Ricardo Darín, ator-fetiche do recente cinema de lá. É só pensar ainda no vencedor do Oscar O segredo dos seus olhos, também de Campanella, no singelo e de forte boca a boca Um conto chinês, de Sebastián Borensztein, e no próprio Relatos selvagens. Mas a explicação da boa imagem conquistada por aqui pela produção argentina de cinema não se resume, obviamente, a um ator, por mais carismático que este seja.


A principal questão é que os filmes argentinos que são lançados ou exibidos no Brasil e, muitas vezes, premiados em festivais internacionais, nos últimos 15 anos, são fruto de um estruturado e lento investimento movido pelo governo a partir dos anos 1990 no audiovisual local, através do Instituto de Cine y Artes Audiovisuales (Incaa). Durante toda aquela década, investiu-se pesado na criação de escolas de cinema e, em especial, na formação de um circuito de salas populares, que, a preços acessíveis, garantiam (e garantem) a exibição das produções argentinas. Ao mesmo tempo que se construiu uma nova geração de profissionais, com nomes importantes, como Lucrecia Martel (O pântano), Pablo Trapero (Família rodante) e Daniel Burman (O abraço partido), formou-se um público capacitado, interessado em assistir à produção de seu país, sejam obras “de massa” sejam títulos autorais. Neste aspecto, é importante ressaltar que a média do espectador argentino tem um consumo literário mais regular do que o do brasileiro e, acima de tudo, os vizinhos não convivem em sua mídia com uma presença tão dominante e definidora de linguagens quanto os braços artísticos da TV Globo. Leia-se: em geral, os argentinos lidam melhor, por exemplo, com tramas elípticas e de conteúdo simbólico, os roteiros atendem a esta demanda mais afinada e as produções são viabilizadas, em sua maioria, via coproduções com outros países, em especial Espanha e França.


É como resume a apaixonada por e pesquisadora do cinema latino-americano Maria do Rosário Caetano, jornalista do blog Almanakito e colaboradora da Revista do Cinema Brasileiro: “Para além do carisma de Darín, há a consistência dos roteiros, a temática ligada aos problemas da classe média e o diálogo com o cinema narrativo clássico, sem esquecer que as histórias argentinas conseguem ser universais”. Em linhas gerais, o cinema argentino popular ou “de arte”, de grande produção ou independente, costuma se comunicar globalmente pelo humanismo de seus entrechos e por um senso crítico nas tramas, mais liberto do que o praticado, por exemplo, no cinema brasileiro, de caráter subvencionado por natureza de produção. Aqui, recuperou-se o audiovisual pós-Retomada de 1995, investindo no “fazer cinema”, criando leis de incentivo e também editais que viabilizassem os filmes. Ficou-se a dever, porém, na garantia de exibição e na formação de um novo público. A cada ano, finalizam-se mais títulos no Brasil, o que é ótimo, mas a gigantesca fatia desta produção tem visibilidade mínima, com nanolançamentos (em pouquíssimas cópias e horários esparsos) ou sem encontrar formas ideais de estrear, o que por vezes adia em anos a luz da projeção ou mantém inúmeros títulos no ineditismo. O grande circuito nacional, portanto, é ocupado em boa parte pelas “globochanchadas” e outros filmes com recursos captados junto a grandes empresas, não diversificando o paladar audiovisual do espectador brasileiro.

O rabo preso que gera um audiovisual financiado corporativamente é um cinema tímido em conteúdo e ousadia estética. Rosário Caetano comenta sobre esse tendão de Aquiles brasileiro: “Nosso cinema comercial tem muito a aprender com o argentino: a elaborar roteiros mais consistentes e criar personagens densos, não caricatos ou escatológicoapelativos como os de nossas comédias, que insistem em ‘mais do mesmo’ – ou seja, em versões temperadas com mais grosserias que as mostradas pela TV aberta”. Quando um mercado percebe que há espectador em bons números para produções mais elaboradas, mesmo que clássicas, como O segredo dos seus olhos e Relatos selvagens, o audiovisual como um todo responde de forma positiva. Em contrapartida, reparando-se nas dez maiores bilheterias brasileiras de anos recentes, mais da metade é sempre tomada pelas chanchadas – e o ano de 2015 promete ser recordista em número de estreias no gênero!


É preciso quebrar fortes vícios de comportamento no Brasil para que mais espectadores tomem contato com uma numerosa e quase invisível produção autoral ou de gêneros que se pratica por aqui. “O nosso cinema autoral, ou de invenção, não tem que mirar no vizinho. Tem que seguir com suas aventuras e buscas de linguagem”, ressalta a jornalista.


O sucesso recente em festivais de cinema no mundo todo de filmes tão díspares quanto O som ao redor, de Kleber Mendonça Filho, e Hoje eu quero voltar sozinho, de Daniel Ribeiro, é a ponta de um iceberg ainda a ser descoberto pelo grande público: ambos marcam a estreia de cada realizador na direção de longas de ficção (sangue novo), foram produzidos de forma alternativa (longe de sombras globais) e tiveram forte retorno junto às mídias especializadas e também a um público ávido tanto por um cinema pensante e crítico (ainda modestos 100 mil espectadores) quanto por um emocional e humano (por volta de 210 mil).

Um pequeno passo se anuncia neste ano de 2015 com a deliberação da Ancine (Agência Nacional de Cinema) de proibir a estreia de um único título estrangeiro em mais de 30% do total do circuito exibidor do país. Era necessária e urgente uma lei protecionista que impeça o ocorrido em novembro último com o mais recente título da franquia Jogos vorazes, que ocupou praticamente metade das salas existentes no país. Esta medida básica garantirá espaços para uma pluralidade maior de títulos em exibição, o que é sempre saudável e há muito é praticada na Argentina.

O cinema brasileiro tem muito a mostrar e seduzir mundo afora, desde que tanto forme internamente um público regular e orgulhoso de sua produção quanto também se solte das amarras subvencionadas, que limitam voos mais ambiciosos. Uma das trilhas saudáveis para isso são justamente as coproduções internacionais, que em suas regras já deliberam autonomia criativa e por natureza garantem melhor acesso ao mercado internacional. Rosário Caetano enfatiza esta necessidade, inclusive entre os dois países teoricamente tão rivais, mas lamentando: “A colaboração do Brasil com outros países é vital, mas as parcerias ainda deixam muito a desejar, perdendo assim a oportunidade de somar atores, equipes técnicas e artísticas”.

É fato, portanto: boa parte das estreias argentinas com as quais o espectador brasileiro toma contato, com ou sem Ricardo Darín, são títulos de ponta de uma produção que reflete um mercado audiovisual mais coeso e independente. E sim, o cinema brasileiro de maior escopo sofre de vícios enraizados no sistema de produção vigente. Neste raciocínio, a Argentina se apresenta no cenário internacional de forma mais competitiva e com um cinema que equilibra ousadia temática com classicismo narrativo. E o cinema brasileiro, multifacetado por sua própria natureza, precisa aprender a jogar este jogo e a proclamar independência estrutural para mostrar de fato suas muitas caras e qualidades. Assim será possível empatar ou ganhar próximas partidas neste gramado cultural.

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